Decisão judicial dá novo alento à possibilidade mais promissora surgida em décadas para legalizar o chamado seguro-pirata no País.
Duas empresas intermediárias processam a Generali, seguradora multinacional. |
A decisão tomada em julho pelo juiz Fernando Viana, da 6ª Vara Comercial do Rio de Janeiro, a favor das empresas GBA Gestão de Benefícios Associativos e SFX Gestão e Serviços e contra a Generali Brasil Seguros, subsidiária de um dos maiores e mais tradicionais grupos mundiais no setor, deu novo alento à possibilidade mais promissora surgida em décadas para legalizar o chamado seguro-pirata no País. O litígio envolve a proteção dos veículos de cerca de 100 mil proprietários organizados em 15 entidades, no valor de 120 milhões de reais, aproximadamente.
Nos termos da liminar, “essa trinca (GBA, SFX e Generali) percebeu uma oportunidade de negócio: legalizar a atividade que, sob o modelo associativo-cooperativista, prestava precária cobertura de danos a veículos automotores de seus membros, caracterizando o que a mídia chamou de ‘seguro-pirata’”.
A ideia da parceria era simples. A GBA constituiria os canais de comercialização e se encarregaria de oferecer “verdadeiros serviços securitários” por meio de apólices coletivas, providas por “uma verdadeira companhia de seguros: a Generali”. Em caso de sinistro, a apuração dos prejuízos indenizáveis seria realizada pela SFX. “A parceria foi organizada pela Generali, que a todo tempo garantiu às requerentes a sua adequação aos parâmetros regulatórios que disciplinam o Sistema Nacional de Seguros Privados.”
O negócio foi iniciado e se mostrou vantajoso para a Generali, ao permitir-lhe dobrar a sua carteira de veículos, segundo fontes do mercado.
A reação inicial no setor foi positiva. Em novembro de 2012, o Centro de Qualificação do Corretor de Seguros divulgou em site texto da corretora Viver Seguro intitulado “Generali Brasil cria saída para associações e cooperativas deixarem mercado ilegal”, reproduzido pelo Sindicato das Seguradoras, Previdência e Capitalização de Santa Catarina e várias entidades. “A Generali Brasil Seguros chamou para si a tarefa de retirar do mercado ilegal as cooperativas e associações que, até agora, vinham vendendo o seguro-pirata... A seguradora passou a oferecer o seguro automotivo para entidades associativas mutualistas... O primeiro contrato foi firmado com a Associação de Pastores e Ministros do Brasil e inclui a presença de corretores de seguros na operação... Com isso, a Generali pretende não só coibir um problema do seu segmento como também incluir consumidores das classes C e D, excluídos do mercado de seguros.”
Tudo corria bem, exceto por algumas dificuldades surgidas desde o início da parceria, em 2013. A GBA e a SFX mantiveram-se confiantes enquanto tentavam encontrar soluções para os problemas.
Em junho deste ano, em um comunicado de sete linhas, a Generali Brasil anunciou a rescisão do contrato. Nenhuma explicação ou justificativa. A seguradora desonrou o contrato, parou de pagar as indenizações e ensejou o cessamento do pagamento do prêmio por diversos segurados, disseram a GBA e a SFX na alegação acolhida pela Justiça em caráter de urgência, com multa diária de 100 mil reais em caso de descumprimento.
Os indivíduos e as associações antes à margem do mercado e a ele incorporados por meio da parceria das três empresas, de repente se viram desprotegidos e a GBA e a SFX foram colocadas em xeque. Elas são a interface entre a Generali e os clientes. A construção tem por base uma seguradora que deixou de renovar apólices e forçou os segurados a migrar para outra estrutura, de natureza securitária típica ou mutualista e isso requer tempo.
A posição do chamado mercado mudou. Em agosto do ano passado, o Sindicato dos Corretores de Seguros de Minas Gerais divulgou artigo com menção explícita à Generali sob o título “Piratas estão migrando para o mercado formal. Susep e MP aprovam isso?” No mesmo mês, o diretor-executivo-comercial da Generali, Davis Leão Machado, na tentativa de apagar o incêndio, esclareceu durante o II Congresso de Seguros de Pernambuco, que “o produto oferecido para cooperativas tem a interpretação equivocada de seguro-pirata. A sua subscrição é realizada da mesma maneira que qualquer apólice de grupo e está aberta a comercialização para todos os corretores”. A modalidade “não tem preços inferiores, apenas formas diferentes de pagamento, e a seguradora possui autorização da Susep para comercializá-lo. É um conceito técnico, atuarial e está aberto aos corretores”.
O ataque continuou. Neste mês, um corretor publicou na internet texto sob o título “Seguro-Pirata: a praga se espalha, ganhando a posição de seguradora”. As entidades aglutinadas pela Generali via GBA e SFX são representativas das cerca de 500 organizações do gênero, no cálculo de entidades do setor, com algo em torno de 500 mil associados. Proporções suficientes para evidenciar a dimensão social e econômica do imbróglio.
O crescimento significativo do recurso ao modelo associativo-cooperativista no ritmo do aumento da frota de veículos nos últimos anos despertou a atenção da Superintendência Nacional de Seguros Privados. Preocupam a entidade a precariedade das operações, a falta de reservas suficientes à indenização de todos os beneficiários, a inobservância da regulação rígida do setor de seguros e dos problemas internos de governança, com risco para a gestão de recursos. A Susep acionou essas entidades e exigiu a sua migração para o contrato com empresa do Sistema Nacional de Seguros Privados, sujeito a regulação e fiscalização.
O fato de uma Generali estabelecer vínculos legais, por meio da GBA e da SFX, com 15 entidades associativo-cooperativistas deveria incentivar uma abordagem criteriosa na análise do chamado seguro-pirata. Ninguém imagina intenção criminosa ou distração de uma das maiores seguradoras do mundo no estabelecimento do negócio. Descartadas, as ex-parceiras são vistas novamente como suspeitas. Entre as centenas de organizações do tipo associativo-cooperativista dedicadas à proteção contra sinistros de veículos há firmas fantasmas, mas existem também organizações reais de caminhoneiros, motoristas de táxi, bombeiros, trabalhadores autônomos e outros, em geral proprietários de veículos usados, com seguro muito caro no mercado formal, devido ao maior risco de problemas dos seus veículos.
O aumento da frota nos últimos anos, para 46,6 milhões de automóveis e 2,5 milhões de caminhões, tornou mais nítido o problema. Apenas 28% desse universo tem seguro. O projeto de lei para regulamentar o chamado seguro-pirata continua parado e a omissão normativa mantém a reserva de mercado de seguradoras e corretores e o desamparo do segmento do mercado de menor renda. Seguradoras e corretoras parecem prescindíveis no formato associativo-cooperativista, embora não o sejam de fato, segundo entendimento da Generali e, no início, de várias instituições do setor, como se mostrou acima.
A marcha à ré do negócio teria provocado a saída do presidente português da Generali Brasil, José Ribeiro, no cargo desde maio de 2012, segundo se comenta no mercado. Substituído no mês passado por Hyung Mo Sung, Ribeiro tinha passagem pelo Lloyd’s de Londres, foi responsável pelo início da operação desse grupo no Brasil e aqui assumiu, prestigiado pela administração mundial do grupo.
As seguradoras têm por base a longa tradição de formas coletivas de proteção mútua dos indivíduos, de especial importância durante guerras e crises. O seu espaço reduziu-se com o avanço do sistema financeiro e do seu setor de seguros, eficiente na cobertura pautada por cálculos atuariais, constituição de reservas e aplicação no mercado.
A Generali informou a CartaCapital que só se manifestará após a decisão final pelas esferas competentes. Para a Susep, “a decisão diz respeito a uma briga privada sem relação com a entidade ou reflexo sobre o setor de seguros”. Em relação ao mercado marginal, a Susep diz atuar para coibir esse tipo de prática e evitar prejuízos aos consumidores.
A disputa promete ser longa.
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